interzona

trechos selecionados de ana cristina césar


ana cristina césar é a minha escritora favorita. uma poeta! e olha que é uma coisa difícil eu gostar de poesia: quando a poesia é bobinha, não tem graça; quando a poesia é mais sofisticada, o bobo é você! e é assim que eu me sinto, de certa forma, lendo os livros da ana c. o bobo sou eu. sempre.

a ana nasceu no rio de janeiro, numa família de classe média. se ela fosse brasiliense, moraria na asa norte, se é que você entende o que eu quero dizer. ela aprendeu a ler e escrever desde bem cedo e começou a criar poemas ainda criança. talento puro desde cedo. terminando a escola, ana foi fazer um intercâmbio na inglaterra. ficou lá por um ou dois anos e voltou pro brasil, e fez faculdade de letras na puc-rio.

ana era uma acadêmica. depois da faculdade, fez mestrado em comunicação no brasil e voltou pra inglaterra pra fazer um outro mestrado em tradução literária. na verdade, quem não a conhece pela poesia, conhece pelo seu outro livro "crítica e tradução", que ela fala sobre tradução, principalmente de poemas.

passou muito tempo escrevendo e publicando alguns dos seus trabalhos em revistas e jornais alternativos - numa época que isso significava não ter que passar pela censura do governo militar. por isso mesmo ela é considerada como "poeta marginal" e parte da "geração mimeógrafo", junto com vários outros grandes escritores.

eu me identifico muito com ela, em diversos quesitos. e eu gostaria de fazer aqui uma pequena seleção de poemas e trechos dos livros dela dos quais eu gosto muito, com só algumas pequenas notas aqui e ali.

***

ciúmes

Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma

Tão distraidamente.

nota: que lindo. caralho, que lindo é ter ciúmes de um cigarro sendo fumado como vício puro. querer ser o vício de alguém.


protuberância 

[...]

Talvez me irrite pisar no impisável

e a morte deve ser muito mais gostosa

recheada com marchemélou

[...]


d’après Jorge de Lima

Invenção de Orfeu I, XVIII 

Gatos vieram, à noite, perseguindo,

deitaram seu hálito sobre o sono.

Logo após o salto imaginário

de fatos e palavras misturados

 

vieram saber de cada gato

o gato que os soubesse, e a todos

compusesse dos restos de desenho

e traços e sexos procurados.

 

Porque nesse instante perdeu-se

a voz que os miasse e desse forma

e de gato se fizesse sem engenho

 

e deformando-os em bichos nunca vistos,

não mais linguagens perseguidas,

mas gato somente se lambendo.


conto de natal

[...]

foram descobertos

hoje

às cinco e meia da tarde

peixes

capazes de cantar


capaz o poeta

diz

o que quer

o que não quer

e chama os nomes pelas coisas

capazes

de cantar

danos causados por olhinhos suados e marés

os olhinhos do poeta

piscam como anzóis

exaustos

na piscina


imagino como seria te amar

teria o gosto estranho das palavras

que brincamos

e a seriedade de quando esquecemos

quais palavras

imagino como seria te amar:

desisto da ideia numa verbal volúpia

e recomeço a escrever

                                    poemas.


 

[...] Tudo pode acontecer dentro de um ônibus interestadual, ainda mais numa tarde de 2ª-feira, voltando para o Rio de Janeiro, com um desânimo que só certos cariocas verdadeiros conhecem. [...]

nota: essa descrição não se aplica somente ao Rio, claro. qualquer ônibus numa tarde de segunda feira tem um pouco dessa vibe.


landscape

[...] Antena Um em off: don’t walk away. Tirou as botas, largou não sabe onde, tomou 10 comprimidos, foi dançar, de manhã fiquei conversando até que ele chegasse, arrancando assunto do fundo do meu peito de mulher aranha, tecendo teia telefônica, S.O.S. solto que não peço. 

[...]

Sinto um grande cansaço pendurado no fio da minha voz. Tremuras da desordem. Assuntos que não sei. Mala diplomática apenas por um fio. I can’t give you anything but love, babe. Praga. É uma praga. Você só gosta das partes difíceis. Hoje te cabe a parte fácil: se sentir alguma coisa pode me chamar. [...]


contagem regressiva

Acreditei que se amasse de novo

esqueceria outros

pelo menos três outros rostos que amei

Num delírio de arquivística

organizei a memória em alfabetos

como quem conta carneiros e amansa

no entanto flanco aberto não esqueço

e amo em ti os outros rostos


luvas de pelica, 1980

Estou muito compenetrada no meu pânico.

Lá de dentro tomando medidas preventivas.

Minha filha, lê isso aqui quando você tiver perdido as esperanças como hoje. Você é meu único tesouro. Você morde e grita e não me deixa em paz, mas você é meu único tesouro. Então escuta só; toma esse xarope, deita no meu colo, e descansa aqui; dorme que eu cuido de você e não me assusto; dorme, dorme.

Eu sou grande, fico acordada até mais tarde.

[...]

eu faço viagens movidas a ódio. Mais resumidamente em busca de bliss.

É assim que eu pego os trens quinze minutos antes da partida.

Sweetheart, cleptomaniac sweetheart. You know what lies are for. Doce coração cleptomaníaco.

Pondo na mala de esguelha sobras do jantar, gatos e bebês adoentados. Bafo de gato. Gato velho parado há horas em frente da porta da frente. Qual o quê. Coração põe na mala. Coração põe na mala. Põe na mala.

nota: nesse livro (meu favorito), ana menciona bastante a busca por bliss. um êxtase, uma felicidade que é acima de tudo. as vezes por meio do ódio, as vezes por meio do amor. doce coração cleptomaníaco... essa frase tá até no rodapé do blog. um coração que rouba e põe na mala as coisas que nem sempre são úteis ou façam o melhor bem. o cleptomaníaco rouba por roubar, sem uma ganância exatamente envolvida. o coração cleptomaníaco não é aquele que ama de uma maneira exagerada, que pulsa e quase infarta. é um coração que rouba pedacinhos de amor. que ama as pequenas coisas - tudo que dá pra roubar e pôr na mala. pôr na mala. pôr na mala.

[...] 

Querido diário:

Vergonha ricocheteia.

[...]

Digamos que você percebesse que 40% de álcool apenas te garantiam emoção concentrada como sopa Knorr, arriscando o telefonema internacional que dá margens a suores contrariando o I Ching que manda que eu me cale, ou diga pouco, ou pelo menos respeite esse silêncio.

[...]

Opto pelo olhar estetizante, com epígrafe de mulher moderna desconhecida (“Não estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?”). Não sou rato de biblioteca, não entendo quase aquele museu da praça, não tenho embalo de produção, não nasci para cigana, e também tenho o chamado olho com pecados.

nota: eu me sinto muito representado por esse trecho. 'não sou rato de biblioteca' same gurrrl, eu nao leio tanto assim; 'não entendo quase aquele museu da praça' - não se prende ao mundo ao redor; 'não tenho embalo de produção' - não lucra, nem cria uma grande obra; 'não nasci para cigana' - não tem essa ligação com o espiritual; 'e também tenho o chamado olho com pecados' - isso pra mim sempre significou duas coisas: uma maldade inocente no olhar (um olho com 'pecados') e aquela lenda dos olhos sanpaku, que é uma historinha promovida nos anos 60 que dizia que quem tem os olhos com a parte branca visível embaixo tem um tipo de maldição. as duas versões se encaixam com a ana. e comigo também, de certa forma.

[...]

Não me peça para arrancar as figuras da parede, puxar a toalha com o jantar completo servido fumegante, atirar álbuns inteiros de retrato pela janela que ficou mais longe, largar todos os pertences, inclusive bota que machuca e casaco que me irrita e sair velejando pelo mundo, ou tomar o avião e chegar sem aviso no Rio de Janeiro, completamente só, ou pior ainda, não mandar carta nenhuma and have done with it.

nota: em busca de bliss. a gente as vezes não precisa mandar carta nenhuma. and have done with it.